12 de abril de 2009

Montreal - a cidade e a imigração

Brasileiros de Montreal – parte VII

Luís Carlos Lopes


A cidade e a imigração (continuação)

Nesta cidade, nada existe de similar às favelas cariocas ou aos bairros da periferia paulista. A pobreza urbana é assistida, como em poucos lugares do planeta. Por diversos meios de ajuda oficial, os mais pobres conseguem, com imensas dificuldades, sobreviver no centro e na periferia, mesmo em situações dramáticas de desemprego e de graves enfermidades. A escala social da pobreza local é bem conhecida. São os mais pobres os imigrantes e uma pequena parcela da maioria francofônica que habita a cidade. São estes os que mais sofrem com o desemprego, a questão da moradia e o acesso ao alimento de todo o dia.

 

Os serviços urbanos municipais funcionam com bastante eficácia. Não há problema de inexistência de esgotos ou de falta de água encanada e tratada. As condições sanitárias são exemplares. O lixo é recolhido com regularidade e os problemas decorrentes do acúmulo da neve, durante o inverno, é objeto de um esforço imenso para impedir que a cidade pare de funcionar. O tráfico urbano de veículos tem os problemas de todas as metrópoles: engarrafamentos, dificuldades para estacionar, índice apreciável de acidentes, poluição atmosférica etc. Nisto, ela parece com qualquer cidade ocidental. Reina o império do automóvel, como por toda parte, por mais que existam esforços, estimulando o uso dos transportes públicos.

 LC                                         o autor

Os níveis de criminalidade de Montreal ainda são muito baixos, comparando-se, por exemplo, aos do Rio de Janeiro ou de São Paulo. O caso de uso de armas de fogo em ações criminosas é inexpressivo, bem como os homicídios decorrentes disto, tanto os praticados por delinqüentes, como os atribuídos às forças policiais. Curiosamente, o direito de adquirir armas de uso pessoal é relativamente próximo ao mesmo existente nos EUA. Entretanto, é muito raro alguém portá-las ou dispará-las no espaço público.

 

Nos últimos dez anos, houve um crescimento substantivo de furtos e de atos vinculados ao tráfico e ao uso de drogas. Mas, a cidade está longe de ser perigosa. Ainda é um lugar onde se pode andar na rua, por quase toda parte, em qualquer hora do dia ou da noite, sem maiores problemas. Os casos de corrupção policial são raros e a polícia ainda tem um comportamento amistoso com a maioria dos cidadãos [20], apesar da existência de casos documentados de racismo explícito praticado pelas autoridades. Imigrantes de outros países, que viviam em regiões conflagradas, sentem-se muito mais seguros nessa cidade.

 

O sistema de saúde do Quebec é público e de acesso universal. Isto quer dizer que qualquer pessoa que seja residente legal da província tem o direito assegurado a qualquer tipo de tratamento médico gratuitamente, excluindo-se os serviços odontológicos, os exames oftalmológicos para o uso de óculos e as cirurgias estéticas. O mesmo ocorre com a educação pública até o segundo grau. As universidades, quase todas públicas, são pagas por todos, e são muito caras para quem é estrangeiro e ainda não migrou oficialmente para o país. Quem está no país, aceito como imigrante, paga o mesmo que os quebequenses. Há um sistema de empréstimos e bolsas que sustentam a possibilidade dos mais pobres terem acesso ao ensino superior. É bom lembrar que o Canadá é uma confederação com muitas diferenças de província para província. O que é válido em Quebec, não é exatamente o que ocorre, por exemplo, em Ontário.

 

O Estado do bem-estar ainda é uma realidade no país e, com muita força, no Quebec. Sua crise é evidente e vem se arrastando desde da década de 1990. Vários benefícios sociais foram cortados ou diminuídos e há uma forte pressão interna e externa para que as coisas mudem ainda mais. Nota-se a crise em vários setores. Ela é bem visível nas áreas da saúde e da educação, mas perpassa todo o tecido social local e é objeto da luta político-eleitoral.

 

Como em todo mundo atual, no Canadá cresce a crença na necessidade de por fim ao ‘Estado Providência’, a ser substituído pelas lógicas de mercado e pelos baixos investimentos nos setores sociais. Todavia, o país está ainda muito longe de ter abandonado o seu keynesianismo tradicional. No Quebec, ele conta com defensores aguerridos, bem como com inimigos radicais. Os imigrantes dependem muito, para sua sobrevivência social, do que ainda está em pé do velho modelo político social-democrático que governou o país por décadas. Tendem a ver nestas características uma forte diferenciação da realidade de onde vieram.

 

Uma das grandes dificuldades vividas pelos imigrantes de Montreal, vindos dos trópicos, sempre foi a dos rigores climáticos. A cidade conhece invernos glaciais, com muita neve, ventos cortantes, eventuais tempestades geladas e temperaturas que podem chegar, episodicamente, até os menos trinta graus Celsius. Faz muito frio, para os padrões da maior parte dos brasileiros, pelo menos por oito meses ao ano. O clima semipolar que alcança a cidade tudo modifica e exige imensos esforços adaptativos. É verdade, que os equipamentos urbanos modernos, desenvolvidos para aquela realidade, facilitam as coisas. Entretanto, as reclamações não são poucas, como também o estranhamento dos quebequenses com a reação dos imigrantes. Por outro lado, o sonho crescente de consumo dos quebequenses de classe média é passar as férias nos trópicos, em especial, no Caribe e na Flórida. Não poucos vão residir ou passar longos períodos, após a aposentadoria, em locais de clima tropical.

 

Os brasileiros têm que investir bastante dinheiro em agasalhos e na calefação de seus domicílios. São custos naturais para quem é do país ou provém de lugares igualmente frios. Entretanto, assustam bastante a quem vem de países que não conhecem tais extremos climáticos. Há muita dificuldade em se acostumar com as temperaturas baixas, os dias curtos do inverno e as mudanças comportamentais ensejadas pelo clima. O encerramento em casa parece, para alguns, uma espécie de prisão, difícil de suportar. Não raro, o clima é apontado por vários brasileiros como origem dos inúmeros casos de depressão, atendidos pelos médicos locais.

 

No breve verão, procura-se aproveitar ao máximo o aumento das temperaturas e as imensas mudanças do comportamento geral da sociedade montrealense. As ruas ficam cheias e coloridas. Inúmeros eventos públicos e ao ar livre aproveitam o brilho e o calor do sol. Os bares ficam repletos por quem pode se refrescar com a cara cerveja local. Nesta época, a cidade fica sendo a mais movimentada do país. Suas ruas, praças e parques repletos de gente fazem esquecer o se passou antes e o que está por vir. A surpreendente mudança tem um efeito muito positivo no estado de espírito local, isto é válido, tanto para os imigrantes como para os quebequenses.

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foto de Jamal Golshan

 

Montreal recebe quase 90% dos que imigram para a província do Quebec. Ela é o destino mais escolhido por aqueles que querem ir viver dentro dos limites da francofonia canadense [21]. Certamente isto ocorre por várias razões, dentre elas o fato desta urbe proporcionar melhores possibilidades de trabalho, do que as demais cidades quebequenses. A sua latinidade deve também explicar o seu poder de atração dos que vem da francofonia e dos demais países que falam línguas neolatinas. O mesmo local, apesar da cultura francofônica dominante, é igualmente, por razões históricas, um espaço da anglofonia. Isto torna a cidade um lugar único no espaço urbano internacional. Processa-se ali, mais do que em qualquer outra região do Canadá, um encontro entre culturas diferentes, no que se refere às línguas usadas, aos costumes de diversas origens e às crenças socialmente compartilhadas.

 

De acordo com o último recenseamento (2006), a região metropolitana de Montreal (RMM) [22] tinha uma população de 3.588.520 habitantes. Destes, 740.355 eram imigrantes [23]. Outros dados oficiais [24], referentes ao universo populacional específico da mesma cidade, dizem que, em 2006, a população de Montreal era, em números redondos, composta por um milhão e seiscentas mil pessoas. Destes, 490 mil eram imigrantes, vindos de toda parte do mundo conhecido. Portanto, um pouco mais do que um em cada três dos habitantes locais nasceu fora desta cidade e deste país. A língua materna dominante era o francês, com 830 mil falantes, seguida pelo inglês, com 200 mil. Os demais cresceram sob o domínio de mais de cem línguas faladas mundo afora.

 

Na vida prática da cidade, cerca de 850 mil conhecem os dois idiomas oficiais e 900 mil usam predominantemente o francês no interior de seus domicílios. Conhecer os dois idiomas é um diferencial na obtenção do tão sonhado emprego. A predominância social do francês indica a forte filiação da cidade à francofonia e sua especificidade nas Américas. O uso corriqueiro do inglês, sobretudo no mercado de trabalho, indica como as regras do poder estão estabelecidas. Não raro, os imigrantes terminam por ser trilíngües, como exigência de suas presenças nesta urbe.

 

O motivo oficial da aceitação de tantos imigrantes no Quebec é o preenchimento de lacunas demográficas locais, em competição com as outras províncias do país [25]. O crescimento vegetativo da população não-imigrante é pequeno, próximo de zero. O espaço geográfico ainda vazio é imenso e o país tem um índice de crescimento econômico razoável, apesar dos efeitos recessivos recentes, devido a forte vinculação com a economia vizinha. A vinda dos imigrantes, sobretudo para Montreal, significa a multiplicação da existência de uma mão-de-obra abundante, dificilmente sindicalizada e propícia a aceitar salários mais baixos. As vagas ocupadas por eles são, como nos EUA, fundamentalmente, a dos empregos que não exigem alto nível de especialização, com exceção dos poucos casos, onde existe, na província, carência de especialistas. Na vida prática, isto resulta em um número muito grande de imigrantes trabalhando de modo precário e com direitos sociais diferentes da população local. Nesta realidade econômico-social, abre-se com força a possibilidade do desenvolvimento de uma cultura do preconceito.

 

Existem no Canadá, especialmente no Quebec, inúmeras dificuldades para o reconhecimento de diplomas obtidos no exterior. Na maioria dos casos, em que deseja exercer a mesma profissão que tinha no seu país natal precisa-se refazer a formação ou complementá-la. Necessita-se, igualmente, comprovar suas habilitações junto às ordens profissionais locais. Fazer isto é caro [26], complicado e a resistência local, em várias profissões, de aceitar os que vêm de fora não é pequena. Outra opção é a de escolher outra formação, cursando e pagando a universidade, adquirindo os pré-requisitos locais e entrando na disputa por postos com os franco-canadenses. Não raro, o imigrante de nível superior termina por desistir e contentar-se com o exercício de funções de nível médio ou elementar.

 

Não existem informações ‘raciais’, como as brasileiras, no que se refere aos habitantes de Montreal. As disponíveis referem-se às origens étnico-nacionais dos mesmos. De visu, a maioria esmagadora dos habitantes desta cidade tem o fenótipo de ‘brancos’. Isto é confirmado pela historiografia da cidade e pelas cifras oficiais e atuais sobre a origem dos que vieram de outros países. Naturais e imigrantes vieram, em momentos distintos, do velho continente, do oeste e do leste. O núcleo de origem da cidade veio da França. Os ingleses permitiram a imigração de muitos irlandeses, e de outros do vasto império colonial comandado pela Grã-Bretanha. Depois da Segunda Guerra, a cidade recebeu alguns milhares de judeus, hoje abrigando o maior número conhecido de sobreviventes dos campos de concentração e extermínio [27]. A presença judaica em Montreal já existia desde o início do século XX. (continua)

  • Notas:

    [20] Ver balanço de ação da polícia montrealense, em 2007: http://www.spvm.qc.ca/upload/documentations/Bilan_2007_chiffres_Francais.pdf

    [21] Ver: http://www.tlfq.ulaval.ca/axl/amnord/quebecdefi.htm

    [22] A RMM inclui a cidade e as adjacências de Montreal, algo como a grande São Paulo, ou o grande Rio, isto é, todos os que vivem em função da metrópole.

    [23] http://www12.statcan.ca/francais/census06/data/highlights/immigration/Table403.cfm?Lang=F&T=403&GH=8&SC=1&S=0&O=A

    [24] Ver publicações convencionais e eletrônicas do Statistique Canadá, http://www.statcan.ca/menu-fr.htm

    [25] Ver: http://www.tlfq.ulaval.ca/axl/amnord/quebecdefi.htm

    [26] O reconhecimento de um diploma pode custar cinco mil dólares, um punhado de documentos e bastante paciência. Não raro, este reconhecimento não é total e é recomendada a complementação dos estudos nas universidades locais.

    [27] Ver a obra de Linteau e a de Armony.

     

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