Parte longa do estudo, mas que fecha o subtítulo.
O autor discorre sobre o problema dos conflitos reais e potenciais entre os imigrantes e os quebequenses de origem. Assunto este que faz parte do Relatório Bouchard-Taylor (2008).
Leia aqui a parte I, parte II, parte III, parte IV, parte VI, parte VII, parte VIII e parte IX
Luís Carlos Lopes
Os autores em tela defenderam, em seu relatório, os princípios do que chamaram de interculturalismo e de laicidade aberta, como soluções que fariam funcionar as acomodações razoáveis. No primeiro, a língua - o francês quebequense - seria o cimento que ligaria todas as culturas envolvidas e permitiria a manutenção do núcleo de origem franco-canadense. A cultura do Quebec incluiria as contribuições enriquecedoras das vindas com os imigrantes, sem perder sua identidade primária. O princípio do estado laico seria usado diferentemente do que é praticado em França, mais aberto e tolerante com as diferenças étnico-culturais. Este deveria propor a manutenção dos direitos de se usar alguns símbolos, bem como o de se negociar todos os casos onde houvesse conflitos interpretativos sobre os direitos de cada religião e cada manifestação culturo-étnica se comportar no espaço público da província.
Os autores basearam suas reflexões no que pesquisaram e ouviram, assim como em dados da realidade passada e presente do Quebec. Lembraram, por exemplo, a época que o clero católico detinha praticamente a totalidade do poder simbólico e cultural da província. Refletiram sobre a dupla realidade dos quebequenses, minoria na América do Norte, incluindo no Canadá, e maioria em relação aos que vieram de fora. Sustentaram a idéia de que não se podia inverter a situação vivida no passado, tendo agora como alvo, os imigrantes. Em outras palavras, confrontaram a história do Quebec com sua realidade atual, buscando alternativas de reafirmação da cultura local.
A proposta da Comissão é de se chegar à conciliação e ao desarmamento dos espíritos. A crise, para eles, começada por volta de 1985, foi intensificada entre 2002 e 2006, e agudizada a partir deste último ano. Os autores acreditam que se viveria agora em um período de calmaria, por efeito, dos trabalhos realizados. Pensam, portanto, que a discussão sobre as acomodações razoáveis já teria dado frutos positivos.
O que se sabe é que o relatório, mal foi publicado, foi recebido com inúmeras críticas do espectro político e acadêmico local. Não houve consenso e nem mesmo uma aceitação tácita. O primeiro ministro, que é membro do Partido Liberal, foi até acusado de ter sido por demais leniente com os resultados da Comissão. Logo, a questão continua em aberto e em debate. Obviamente, ainda não houve tempo, de se mensurar os efeitos do que foi dito no já famoso relatório.
Bouchard e Taylor reafirmaram, em passagens de seu texto, o caráter democrático e liberal da província do Quebec atual. Estiveram a serviço do governo, dirigido pelo Partido Liberal, em um espaço político, onde ainda sobrevivem elementos e práticas da antiga visão social-democrática, anterior a avalanche internacional do neoliberalismo. Suas recomendações finais soam como uma espécie de aconselhamento destinado aos cidadãos do Quebec, sobretudo aos que advogam a condição de franco-canadenses. Elas têm o sentido de relativizar o racismo anti-imigrante existente no Quebec, bem como no resto do Canadá, no gigante vizinho e em vários países da Europa ocidental.
O foco principal do documento visa, especificamente, as autoridades governamentais da província, fazendo uma série de sugestões práticas de enfrentamento do que se chama por lá de acomodações razoáveis. Baseiam-se na idéia de integrar os imigrantes, por meio do polêmico afrancesamento, fundamentalmente, lingüístico. Eles não deixaram de mencionar as imensas desigualdades sociais que os afetam e a necessidade de políticas de governo contra os preconceitos raciais e sociais que existem e vem se desenvolvendo na província.
O Quebec ideal, para eles, seria francofônico, laico com tolerância e negociação, com menores desigualdades sociais e de gênero [16], maior integração dos imigrantes e consciente na luta contra preconceitos tais como a islamofobia e o antisemitismo. O tempo dirá sobre o efeito concreto deste impressionante documento. Não se pode ainda compartilhar do seu otimismo, em um mundo conturbado por questões similares. Não há como aquilatar que tipo de influência ele terá nas decisões do núcleo duro do poder local. [17]
Os brasileiros que escolhem o Quebec como ‘país’ de acolhida enfrentam os mesmos problemas dos demais imigrantes, com as especificidades de terem a mesma religião colonial - o catolicismo - que fundamentou a cultura quebequense e a mesma influência da latinidade de base local. Todavia, as diferenças entre a cultura dessa província canadense e as culturas brasileiras são muito grandes, provocando diversas dificuldades adaptativas. O que o Quebec poderia aprender com o Brasil, consiste na fácil integração e a imensa tolerância que os imigrantes encontraram e ainda lá encontram.
É difícil imaginar que as batalhas da integração e do controle dos preconceitos étnicos serão facilmente vencidas. A situação dos imigrantes tem se deteriorado em todo o chamado primeiro mundo. As mídias estão repletas de informações sobre o problema. Alguns países ricos, que, agora, enfrentam problemas econômicos graves, estão restringindo a imigração e aumentando o cerco aos ‘ilegais’, antes aceitos tacitamente, por significarem baixos salários e grandes lucros.
É verdade que o caso do Canadá é específico. Ainda há muito interesse em recebê-los, desde que sejam filtrados pelos critérios de interesse do país e de suas províncias. Não é o mesmo, por exemplo, do que se passa, hoje, na Espanha. Entretanto, há traços mais gerais do problema. Na primeira fase da chamada globalização, houve um forte estímulo das migrações dos países pobres para os ricos. Agora, na segunda, vem-se tendendo a levantar barreiras e a situação dos imigrantes que conseguem furá-las - legais e ilegais - está longe de ser paradisíaca.
Há, em vários países um refluxo e o retorno compulsório ao país natal. Isto ainda não acontece massivamente no Canadá. Mas, se a recessão mundial atingir o país, certamente irá ocorrer, como já é fato nos EUA. O que faltou no relatório Bouchard-Taylor foi uma análise mais universal do problema. As migrações para o Quebec são também para o Canadá, país que faz parte da comunidade internacional, em uma posição de destaque econômico e político. Os mecanismos deste processo se irradiam pelo mundo afora, contaminando países que fornecem imigrantes para o mercado internacional de trabalho e os que os recebem.
Um dos motes do relatório é o de lembrar a situação de opressão que os franco-canadenses sofreram, antes da denominada revolução tranqüila, da década de 1960. Nesta época, eram tangidos como gado. Não era sequer bem visto o fato de que eles usassem na vida social e profissional um idioma - o francês -, isto porque o poder político e econômico do país falava exclusivamente o inglês. Hoje, a situação se inverteu e a fala proficiente do ‘bon français’, isto é o francês do Quebec, é uma das condições apontadas para qualquer possibilidade de integração. Como sempre, a história humana tem idas e vindas.
As questões referentes à presença dos imigrantes têm uma dimensão bem maior do que a tentativa das acomodações razoáveis, proposta como solução no Quebec. A interpenetração e os choques entre culturas distintas, hoje, existem independentemente das migrações internacionais e do que vem ocorrendo no Canadá. As lutas pelo respeito à diversidade cultural e pelos direitos humanos essenciais, ganharam feições planetárias. Nenhuma nação tem o direito à barbárie, justificada como seu rosto cultural. Nenhum país tem o direito de impor ao outro o seu modo de vida e sua lógica cultural. Conseguir um equilíbrio nestas matérias é um desafio a ser tomado como parte dos novos paradigmas éticos da política internacional.
Notas:
[16] A questão da mulher foi intensamente debatida, em contraponto com as culturas imigradas que as desvalorizariam.
[17] Esta análise foi escrita poucos dias após o lançamento oficial do relatório.
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